“Gostei do que ele falou, ele, o Harley: o pastor pastou. Pastou mesmo. Conversamos um pouco sobre outras coisas – cachorro, plantas, vizinhos – e acabamos voltando à religião, a Deus. Sempre no nosso caminho, ainda bem. Religião é poesia que transborda, ele disse, depois de pensar um pouco, parece que ainda falava dos versos da Corrinha para o padre no romance. Tudo está nas mãos de Deus, menos a veneração a Deus. Bem, o Harley (‘Por favor: Harley só, nada de senhor’) me disse muitas palavras certas e bonitas como essas, mas gostei muito de outra coisa, muito verdadeira, em que eu nunca tinha pensado. Que o importante é servir e não dominar, que a caridade está presente em todas as religiões e instituições que pregam o amor ao próximo, máxima cristã, embora a maioria de seus líderes queira mais dominar do que servir. Puxa, ele fala bonito. Disse que até doutrinas ateias, essas que pregam a revolução, defendem a igualdade e a fraternidade. Aliás, é isso que as move. A bondade não tem dono, essa é que é a verdade, eu pensei, não foi ele quem falou. Ele me fez pensar isso. E logo depois disse uma coisa que parecia que tinha lido meu pensamento. Que são infinitas as portas de entrada para a casa de Deus, tão infinitas quanto as entradas de uma grande cidade como Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, ou Nova York, Cidade do México, Tóquio, Pequim, que são maiores ainda. Que não adianta as religiões ficarem brigando como se cada uma fosse a dona da chave do Além, porque são infinitas essas chaves e ninguém é dono delas. Falou ainda que Cristo gostava dos humildes e não dos poderosos. E caridade, menina, mais do que dar consiste em compreender.”
(Alzira/Piedade, personagem do romance Vale das ameixas, de H.A.)