Vale das ameixas/Kristeva

“Imagino que já tenham ouvido falar em J. K., Julia Kristeva. Muito antes dela, antes de Cristo, já era assim: um texto é sopro ou seiva de outro. O verbo não se fez carne? Vejamos um caso exemplar. Conhecem, é claro, o romance Memórias póstumas de Brás Cubas. Pois muito bem. Então se lembram da linha final: ‘Não tive filhos; não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria’. Fecho de ouro. Original? O romance saiu em 1880. Leiam agora um trecho da carta de Flaubert à sua amada Louise Colet, de dezembro de 1852: ‘Um filho meu! Oh não, não, não! Que toda minha carne pereça e que eu não transmita a ninguém a estupidez e as ignomínias da existência!’. Coincidência? Machado desconhecia a carta? Tolos. Quem nos trouxe à luz esse elo transatlântico escondido por mais de cem anos foi o professor e crítico João Alexandre Barbosa no ensaio “A volúpia lasciva do nada” (que belo título!), de seu pequeno e saboroso A biblioteca imaginária, que teve parcos mil exemplares alguns anos atrás. Se tiver sorte, você poderá encontrar um em sebo ou biblioteca. Emprestaria o meu, caso ainda estivesse por aqui – quando estas memórias saírem, eu já terei saído de cena. Algum filho extraviado poderá já ter extraviado o volume. Que fazer? Ouçam agora o que diz Julia K.: ‘Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto’. Intertextualidade. Uma fraterna rede de diálogos, sem desprezar as raízes. Se alguém me perguntar de quem são as citações e onde uma termina e outra começa, não saberei dizer, Eco escreveu algo assim em Pós-escrito a O Nome da Rosa. Proust dizia que todo escritor começa pelo pastiche.”


(H.A., Vale das ameixas.)