Mil corações/Níobe, Clarice

“A cebola é uma flor. Se não for, eu nomeio. Uma flor saborosa. Ela não me traz lágrimas. O que eu toco não me dói. Choro com o castigo na alma, com a mentira e a maldade. Eu pego a cebola, ela está na minha mão. A cebola é perfeita, ela se despe bonita e mágica, eu amo a cebola. Níobe teria trocado a cebola pelo ovo se tivesse lido Clarice Lispector. Ela repetia frases de ‘O ovo e a galinha’ enquanto cortava rodelas de cebola sobre o frango e a campainha, a campainha. Desligou o fogo, as mãos no avental. Quem seria? Apertava a chave com os dedos, indecisa, temia conhecer de perto o homem que o olho-mágico (igual a cebola?) mal revelava. Carvalho viajando, os meninos na dor – ‘E Maria foi embora’. Níobe, só Níobe. Outra olhada, o primeiro giro na fechadura, o ruído final, a porta está destrancada. Só virar a maçaneta e ele estará presente, real. O que desejava? Ajeitou o laço do robe na cintura, cobriu a carne. Vendedor de livro? Cobrador? Baú?”


(H.A., Mil corações solitários.)