“Fiquei uns dias na casa do René, meu xará, lembra? (Acho que você não o conheceu pessoalmente.)
Ele me deu um quadro lindo (lindo em termos, porque é chocante, bravo) que quase vendi no aeroporto antes de vir embora. É, vim de avião. Precisava sair por cima, voar. A viagem foi a coisa mais leve que já existiu pra mim. Eu me sentia no céu, a alma flutuava. Ah, o quadro. É uma imitação (proposital, claro) do Retirantes do Portinari. Quem queria comprar era um sujeito chamado René. Incrível, não? Eu, o autor do quadro e um comprador – todos três René. O quadro não cabia na mala e eu nem embrulhei. O cara parou pra olhar, ficou com as orelhas em sangue, chegou pertinho, piscou várias vezes, viu a assinatura e perguntou: ‘Você, o René?’ ‘Sou René, mas não sou o artista.’ Ele quase deu um pulo, não sei se de alegria ou susto. Insistiu em comprar. Eu jamais venderia.
O sujeito, desses engravatados acostumados a resolver tudo com dinheiro, queria de qualquer maneira levar o meu presente. Ofereceu uma quantia que eu considerei alta e logo dobrou. Balancei dentro de mim e ele deve ter percebido. Pensei: ‘Quem tem pouco não vai a Roma’. Mas resisti. ‘Ô rapaz, eu também me chamo René…’ Será que era verdade?””
(Da carta de René à irmã, Ana, Mil corações solitários, de H.A.)