Mil corações/Gamaliel

“Claro está que o filho não escolhe pai, recíproca válida. Observo e constato: os meninos trilham o roteiro materno – desmiolados. René, um pândego, só piscina e bicicleta, mimado, o irresponsável, nunca parou num emprego, onde aprendeu tanta preguiça? Anda falando num pintor que teria o seu nome. Deve ser invenção dele, mas, se porventura existir, só pode tratar-se de um homossexual. O que lhe pode reservar o mundo? Clássico exemplo edipiano: busca na água o retorno à mãe e o afastamento de mim sobre as rodas. Viagem irrealizável: piscina não é útero e o guidom sempre volta-se para a casa, a mesa posta, a cama limpa. Ana – atrevida desde bebê, o nariz nasceu primeiro, não me surpreende a petulância, apenas demorou a manifestar, só agora na adolescência, não tolero mais aquelas músicas altas que entorpecem, é possível sentir o demônio no ar. E nutre perigosa amizade com a filha de uma desquitada. Quer derramar tudo no inferno. Minha paciência esgota-se logo. A mãe, eterna criança, tudo fantasia, pesadelos diários, carece de algum conhecimento das leis da existência. Entro em casa e encontro os três mudos: o vadio, a malcriada e a infantil. São, todavia, sobreviventes. Divorciados da realidade, da vida nacional e do mundo, da questão política. Nada entendem, nada conhecem. Mas, sem saber, sobreviventes.”


(Gamaliel Carvalho, personagem de Mil corações solitários, de H.A.)