Do pomar

Frases e trechos de livros de Hugo Almeida

  • “Mãezinha, desculpa dar a notícia assim, espero que a Senhora fique feliz em ter mais um netinho e que ele seja mulher mesmo. Dessa vez até concordo com o meu marido, acho esquisito falar assim ‘meu marido’ porque sinceramente eu não me considero esposa dele não, como já falei antes em outras cartas. Em todo caso vem aí mais uma alma, que seja bem-vinda. Pena que não vai dar pro René brincar com ela que vai nascer quando ele já tiver quase dez anos. Mas, o que fazer?”


    (Níobe, personagem de Mil corações solitários, de H.A., em carta à mãe.)
  • “A garrafa no chão. Todos assentados em volta, mudos.

             – Assim não dá, gente. Descontração. Des-con-tra-ção. Acende unzinho aí.

             – Por que vocês não começam?

    – Tanto faz, mas agora é a nossa vez.

             – Roda, roda, Bê.

             […]

             – A Ana também está no jogo. Me dá um pouco aí, Aninha.

             – Esse é dos bons, vi logo pelo cheiro.”


    (Cena de Mil corações solitários, de H.A.)
  • Mamãe,

    Eu te amo.

    Levei quase meia hora com o bloco na mesa, não conseguia começar. A gente demora para perceber o lógico, não? Te amo, mamãe, te amo, te amo, te amo. Ainda vou escrever uma carta sem fim sobre isso. Não agora. Hoje falo de hoje. Uma forte presença da senhora me invadiu, presença quase física, coisa absurda na intensidade, era como se a senhora estivesse aqui perto. Verdade. Deve ser saudade, uma saudade que me deixou meio tonto quando saí pela rua, sonho de te encontrar. Veio uma coisa indescritível, densa e suave, como se você (acho melhor te chamar de você, assim me sinto mais próximo e mais filho) tivesse se transformado numa onda de ar e voou por aqui, pelo meu canto, pela cidade. É, mamãe, hoje senti você pertinho, bem pertinho. Fiquei tonto, tonto de quase flutuar, aquela tontura de saudade ou felicidade que a gente sente quando sabe que vai ver, daqui a pouco, alguém muito querido.”


    (René, personagem de Mil corações solitários, de H.A.)
  • “Engoliram o d do gerúndio: namorano, falano, ouvino. Oralidade… Língua que não é do berço se aprende e desaprende no esfregar dos dias. Aulas e livros ajudam. Fiz curso de português para estrangeiros, Biela sabia mais e aprendia com rapidez; me ajudava. Eu me aventurei na poesia, tropecei na pedra de Itabira, tropeço que levou à frente. Feito Biela. Devo bastante também ao Graça. Mestre do bom texto e cliente da alfaiataria, leu com paciência de professor, boa vontade e benevolência meus primeiros rascunhos em português, e me apontou caminhos. Graça. Nem Ramos ou Aranha. A. C., o Graça, poeta e amigo. Pensei em enviar a Laura um poema dele: Todos os poemas do mundo/ não valem/ o universo/ do corpo de uma mulher. Desisti, ficaria furiosa, me chamaria de machista. Tio Oskar assinaria esses versos.”


    (Harley, personagem de Vale das ameixas, de H.A.)
  • “A cebola é uma flor. Se não for, eu nomeio. Uma flor saborosa. Ela não me traz lágrimas. O que eu toco não me dói. Choro com o castigo na alma, com a mentira e a maldade. Eu pego a cebola, ela está na minha mão. A cebola é perfeita, ela se despe bonita e mágica, eu amo a cebola. Níobe teria trocado a cebola pelo ovo se tivesse lido Clarice Lispector. Ela repetia frases de ‘O ovo e a galinha’ enquanto cortava rodelas de cebola sobre o frango e a campainha, a campainha. Desligou o fogo, as mãos no avental. Quem seria? Apertava a chave com os dedos, indecisa, temia conhecer de perto o homem que o olho-mágico (igual a cebola?) mal revelava. Carvalho viajando, os meninos na dor – ‘E Maria foi embora’. Níobe, só Níobe. Outra olhada, o primeiro giro na fechadura, o ruído final, a porta está destrancada. Só virar a maçaneta e ele estará presente, real. O que desejava? Ajeitou o laço do robe na cintura, cobriu a carne. Vendedor de livro? Cobrador? Baú?”


    (H.A., Mil corações solitários.)
  • “A edição da correspondência entre Osman Lins (1924-1978) e Hermilo Borba Filho (1917-1976), E viva a vida! (São Paulo: Hucitec, 2024), alcança duplo mérito: amplia a obra e também a fortuna crítica dos dois escritores, graças ao rigoroso, paciente, esmerado trabalho empreendido por Nelson Luís Barbosa em pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP). No fornido volume de 508 páginas (formato 16 x 23 cm), o estudioso graduado em Letras Francês/Português, mestre e doutor em Literatura Comparada, sempre pela USP, reúne, analisa e contextualiza 201 cartas, incluindo bilhetes e telegramas, trocadas pelos dois grandes autores pernambucanos de 1965 a 1976; Osman (106) em São Paulo e Hermilo (95) em Recife. A escritora Julieta de Godoy Ladeira (1927-1997), viúva de Osman Lins, deixou a correspondência reunida, com anotações e o título colhido no fim da última carta de Hermilo, e Nelson Barbosa fez a pesquisa documental (encontrou novos papéis), a edição de texto fidedigno e anotada e uma esclarecedora apresentação desse ‘livro valioso’ e de ‘leitura imperdível’, como atesta na orelha Sandra Nitrini, uma pioneira nos estudos osmanianos. De fato, o livro traz novidades até mesmo para os mais aplicados estudiosos dos dois escritores.”


    (H.A., ‘E viva a vida!’, a dialética das cartas”, revista Estudos avançados, da USP.)
  • No próximo sábado, 11 de outubro de 2025, vou lançar em Belo Horizonte a 4ª edição do meu primeiro romance, Mil corações solitários, Prêmio Nestlé-1988 e Cidade de Belo Horizonte-1987 (com o título de Carta de navegação). O lançamento será no Ah! Bon Café, no Diamond Mall, das 10 às 13h. Reeditado pela Sinete, o livro traz orelha da escritora e psicanalista Ana Cecília Carvalho e posfácio do escritor Ronaldo Cagiano. Os dois estarão presentes ao lançamento.


    (Conto com a presença de amigas e amigos e novas leitoras e novos leitores.)

  • “Uma injustiça: do Brasil por enquanto nenhum, não por ausência de valores. Se dessem de novo um Nobel póstumo, o primeiro seria do Machado. A fila não é pequena: Bandeira, Euclides, Graciliano, João Cabral, Lins, Lispector, Mário, Rosa. Que cada um lembre seus autores amados. Por que não em vida? Grande barreira: a língua. Português, idioma ainda pouco traduzido. Drummond por duas vezes seria apresentado candidato. Dissuadiu o amigo que levaria seu nome à Real Academia. Ameaçou romper a amizade. Respeitemos o recato do poeta. Ficou para Saramago o primeiro de língua portuguesa. Por que não Pessoa? Apenas um livro em vida. O idioma. Seria outro póstumo. Quando ganharmos o primeiro será uma alegria amazônica, meus irmãos. Já disse que tenho o coração dividido.”


    (Harley, o Timo, personagem de Vale das ameixas, de H.A.)