Frases e trechos de livros de Hugo Almeida
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“Claro está que o filho não escolhe pai, recíproca válida. Observo e constato: os meninos trilham o roteiro materno – desmiolados. René, um pândego, só piscina e bicicleta, mimado, o irresponsável, nunca parou num emprego, onde aprendeu tanta preguiça? Anda falando num pintor que teria o seu nome. Deve ser invenção dele, mas, se porventura existir, só pode tratar-se de um homossexual. O que lhe pode reservar o mundo? Clássico exemplo edipiano: busca na água o retorno à mãe e o afastamento de mim sobre as rodas. Viagem irrealizável: piscina não é útero e o guidom sempre volta-se para a casa, a mesa posta, a cama limpa. Ana – atrevida desde bebê, o nariz nasceu primeiro, não me surpreende a petulância, apenas demorou a manifestar, só agora na adolescência, não tolero mais aquelas músicas altas que entorpecem, é possível sentir o demônio no ar. E nutre perigosa amizade com a filha de uma desquitada. Quer derramar tudo no inferno. Minha paciência esgota-se logo. A mãe, eterna criança, tudo fantasia, pesadelos diários, carece de algum conhecimento das leis da existência. Entro em casa e encontro os três mudos: o vadio, a malcriada e a infantil. São, todavia, sobreviventes. Divorciados da realidade, da vida nacional e do mundo, da questão política. Nada entendem, nada conhecem. Mas, sem saber, sobreviventes.”
(Gamaliel Carvalho, personagem de Mil corações solitários, de H.A.) -
“Laura, poema vivo, vulcão em repouso. Oh, Laís, meu sonho e meu pecado. Piedade, a fiel Alzira. Léa, Léa do meu devaneio. Éden, mestre que Túlio me trouxe. Núbia de meus sonhos fugazes, permanentes. Loren, Loren, minha febre. Só de uma não quero mais saber, Noel. Amanda, bas-bleu, mulher pedante. Xispeteó, ursa maior. Todas falam mel, Osman, she says fel. Mas que mulher indigesta! Merece um tijolo na testa.”
(Harley, o Timo, personagem de Vale das ameixas, de H.A.) -
“Hoje Níobe recorda com o coração morto. A noite sem carinho. O homem ali, calado, distante. Ela só lágrimas. Mais de um mês para beijá-la, a boca toda aberta, mordendo o vazio.”
(H.A., Mil corações solitários.) -
“Acho que tem crime que não merece perdão. E o crime dele é desse tipo.”
(Níobe, personagem de Mil corações solitários, de H.A.) -
“Thomas Mann emprestou um romance de Kafka a um certo Albert Einstein, que o devolveu: ‘Não consigo acompanhar; o espírito humano não é tão complexo’. Outra face da relatividade. Onde, quando? Ecos da terra. O próprio K. lembrou a Milena uma madrugada memorável de Dostoiévski. Ele escrevia seu primeiro livro, Pobre gente; morava com um amigo literato. Como se chamava?”
(H.A., Vale das ameixas.) -
“O assassinato de minha filha me mata aos poucos há trinta anos. O covarde crime e o sumiço do corpo. Se alguém ainda sabe, ninguém diz onde está. Onde foi jogado, enterrado ou largado. Sei apenas que Laís foi executada como se chamasse Celeste, sei que ela estapeou o algoz e não revelou seu verdadeiro nome – foi ele mesmo, esse assassino anônimo, quem contou isso anos depois a um jornal. Laís sempre foi forte, corajosa, menina de caráter. Queria justiça, liberdade, democracia. Era isso que a movia. Foi o que a levou para as matas da Amazônia aos 22 anos. Não se dobrava à injustiça, não temia a força bruta, não se entregava, lutava sem medo. Mas era afetuosa, um doce de menina. Escrevia contos, amava poesia. Ah, Santo Deus, uma vida em flor entre bárbaros, selvagens, não digo os bichos da floresta – eles eram amigos; eu me refiro aos verdadeiros animais, os assassinos e torturadores. Algum deles foi preso, seviciado, executado ou sumiu? Estão todos aí, livres, até hoje impunes, acobertados, um cancro no tecido social. Anistia plena, plena injustiça. Há crimes sem perdão.”
(Mãe da guerrilheira morta no Araguaia, Vale das ameixas, de H.A.) -
“Fiquei de novo nesta casa vazia com minhas tristezas e perguntas. Uma vida que eu não sabia dentro de mim. Quero uma filha menina mulher, meu marido quer menino homem e ele já até decidiu como vai se chamar, acho que a gente não combina em nada. Ainda faltam oito meses de espera. Ainda bem que tem a Senhora para eu conversar aqui de vez em quando, ou todo dia ou quando me der vontade, mesmo assim longe, longe como nem sei o quê.”
(Níobe, em carta à mãe, em Mil corações solitários, de H.A.) -
“Sono, sonho – romance. Uma arquitetura, não decoração interna. Gente, personagens – nós. Alguma virtude, mais vícios. Literatura, pássaro livre. Nós de nós. Como desatar? É possível? Preciso? Romance não é outdoor: olhou, entendeu. Partida de xadrez também não. Cintila significados. Uma história da qual o leitor deve participar, navegar no texto e descobrir as elipses, o que o autor disse, mas não escreveu. História que cative e convença. Quase como a própria vida. Thomas Mann emprestou um romance de Kafka a um certo Albert Einstein, que o devolveu: ‘Não consigo acompanhar; o espírito humano não é tão complexo’. Outra face da relatividade.”
(H.A., Vale das ameixas.)