Do pomar

Frases e trechos de livros de Hugo Almeida

  • “Na volta de uma visita à avó de Eni (‘devo muito a ela, mãe’) no hospital, Níobe encontrou um bebê chorando no banco traseiro do Volks. Foi a primeira vez que saiu dirigindo sozinha, quatro dias após tirar a carteira de habilitação, à revelia de Carvalho. O marido não usava mais o carro e ela não achava justo ele ficar parado na garagem. Frequentou a autoescola escondida durante dois meses, perdeu o primeiro exame por descuido e nervosismo e, no último sábado, saiu do Detran alegre com a aprovação. ‘Por que fui deixar o carro aberto, mãe? Deus escreveu assim.’ O que fazer com a criança? A dúvida: levar ou não levar? Não seria melhor devolver ao hospital? Será que ela fora ‘escolhida’ como mãe adotiva? Níobe ficou olhando o bebê sem conseguir resolver o seu destino.”


    (H.A., Mil corações solitários.)
  • “Timo. Você escolheu esse apelido. Claro que acredito; foi sua mãe quem disse. Já sonhei com ela, me falou umas coisas. Cousas. Do berço, de sede. Não posso falar, ela exigiu. Estava feliz e triste. Alegre nos segredos, tristonha agora, longe, sabe onde. Ditosa no garbo e talhe. Acredito e não. Prefiro viver, sonhar e acordar. Minha vida: costura, tinta, temperos. E sonhos. Essa a receita não escrita, um dia assim, todos assados. Santa mãe do Harley, meu capeta. Timo. Arabesco. Isso posso falar. Eu não acreditava no que você dizia. Sua mãe confirmou. Sem detalhes, nada, nenhum. Já disse, não posso falar. Promessa que fiz a ela.”


    (Núbia, personagem do romance Vale das ameixas, de H.A.)
  • “Eles desceram o barranco. Lá embaixo, encostada na margem, Ró viu a canoa. Parou um pouco para olhar. Era uma coisa estranha. E muito simples. Um tronco grande, cavado no meio, deitado na água. Era uma canoa meio velha, mas havia nela alguma coisa mágica.
    – Vamos, rapaz – o pai disse pro Ró, que ia ficando para trás.”


    (H.A., Viagem à Lua de canoa.)
  • “Puxa vida, o Harley saca mais de religião do que os padres e pastores. Eu ficaria a tarde toda e a noite conversando com ele, não sei se só conversando porque ele, mesmo assim bem mais velho do que eu, é muito envolvente, me abraça com a voz e os olhos – e hoje ele não me olhou para… daquele jeito. E falou Jesus não reprovaria a união do saber com o sabor. Só quando cheguei em casa fui perceber que eu vestia de novo a blusa com a coruja de olhos saltados.”


    (H.A., Vale das ameixas.)
  • “Aconteceu como acontecia. Carvalho conheceu Níobe em viagem a Paraíso do Leste. Uma visita. Cartas trocadas com o sogro, pouco mais velho. Cerimônia marcada para agosto, dali a três meses, no aniversário da moça. ‘Eu não quero casar com ele, pai’, Níobe chorou, chorou. ‘Nem sei quem é direito.’ Poucas palavras, o homem decretou: ‘É um cavalheiro distinto. Honesto. Trabalhador. Já decidi’. E calou-se. Sozinho, concluiu que o contrato sob a bênção do padre daria mais segurança à filha do que a sala de aulas.”


    (H.A., Mil corações solitários.)
  • “Volto às Sereias porque outras mulheres bailam na minha memória. Sim, A dança, de Matisse. O mesmo movimento, o mesmo giro no sentido horário. Henri Matisse e Teofil Kwiatkowski sonharam o mesmo sonho perdido no tempo: As três graças. Bailando, à destra roda, sobre a via, vinham as três damas. Não vamos esquecer das Náiades, do poeta e pintor (polonês, claro) Kamil Norwid, 1848. Estudou pintura na Itália. Sempre atrás do sonho. Nos dois anos em que viveu nos Estados Unidos, foi desenhista. O que lhe dava pão e agasalho, no entanto, era o trabalho como lenhador. Norwid morreu esquecido em Paris, num asilo de imigrantes pobres. Procurar, no infinito, quem foi o primeiro, é ingenuidade e tolice. No caminho, o pintor e ceramista italiano Luca Della Robbia, nascido cem anos antes da descoberta do Brasil, com o baixo-relevo Ronda de crianças, Coro ou Cantorias. Impossível saber quem inventou a roda. E de que valeria saber? Tudo sempre girou.”


    (H.A., Vale das ameixas.)
  • “Ler A rainha dos cárceres da Grécia sem perceber as diferenças e semelhanças em relação ao romance anterior de Osman Lins? Impossível. Pelo menos para um estudioso da obra, para um ensaísta. Movido por criativa inquietação, o escritor fazia da inovação ponto de honra. Ruptura e continuidade, como dizia. Ambos tratam da arte romanesca, mas algo é bem claro: um constrói o romance; o outro como que o desconstrói, construindo-o. Ou seja, como muitos estudiosos já disseram: Avalovara trata da escrita de um romance; A rainha, da leitura.”


    (H.A., A voz dos sinos.)
  • “Gostei do que ele falou, ele, o Harley: o pastor pastou. Pastou mesmo. Conversamos um pouco sobre outras coisas – cachorro, plantas, vizinhos – e acabamos voltando à religião, a Deus. Sempre no nosso caminho, ainda bem. Religião é poesia que transborda, ele disse, depois de pensar um pouco, parece que ainda falava dos versos da Corrinha para o padre no romance. Tudo está nas mãos de Deus, menos a veneração a Deus. Bem, o Harley (‘Por favor: Harley só, nada de senhor’) me disse muitas palavras certas e bonitas como essas, mas gostei muito de outra coisa, muito verdadeira, em que eu nunca tinha pensado. Que o importante é servir e não dominar, que a caridade está presente em todas as religiões e instituições que pregam o amor ao próximo, máxima cristã, embora a maioria de seus líderes queira mais dominar do que servir. Puxa, ele fala bonito. Disse que até doutrinas ateias, essas que pregam a revolução, defendem a igualdade e a fraternidade. Aliás, é isso que as move. A bondade não tem dono, essa é que é a verdade, eu pensei, não foi ele quem falou. Ele me fez pensar isso. E logo depois disse uma coisa que parecia que tinha lido meu pensamento. Que são infinitas as portas de entrada para a casa de Deus, tão infinitas quanto as entradas de uma grande cidade como Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, ou Nova York, Cidade do México, Tóquio, Pequim, que são maiores ainda. Que não adianta as religiões ficarem brigando como se cada uma fosse a dona da chave do Além, porque são infinitas essas chaves e ninguém é dono delas. Falou ainda que Cristo gostava dos humildes e não dos poderosos. E caridade, menina, mais do que dar consiste em compreender.”


    (Alzira/Piedade, personagem do romance Vale das ameixas, de H.A.)