Frases e trechos de livros de Hugo Almeida
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“E se existisse copa do mundo do carnaval, este país seria campeão todo ano. Que espetáculo de cor, som e compasso! Ninguém faz igual. E aquelas mulheres sambando na avenida, meu Deus, que pernas elétricas, não só pernas. Olha essa mulata quando dança / É luxo só. Ai, Ary. Nem posso lembrar.”
(H.A., Vale das ameixas.) -
“Quem está na capa do caderno de fim de semana? Depois de nove meses de sucesso no Rio, chega a Belo Horizonte a consagrada peça de Roberto Athayde… Apareceu Léa, a Margarida, no Marília. Timo outra vez se agita. Nem me vi, o telefone na mão. É o gigante adormecido que se levanta. Calma, rapaz. Ligo, ingressos esgotados. Sim, só hoje, só esse espetáculo. Talvez o senhor consiga um na porta do teatro, sempre tem alguém que desiste. Entendi o recado, câmbio negro livre.”
(H.A., Vale das ameixas.) -
“O casamento de Tã deixou a casa vazia, sem ar, sem luz. Passei a ter mais tempo para mim e para o César. Para mim e para Palmira. Ele seguia me vigiando, eu não lhe dava trégua. Ela me levava sob vigilância. Um dia ouvi uma voz desconhecida, nítida, sussurrante: “Louco, sua mão me queima”. Acordei. Procurei César na casa toda. Estava sentado num canto da cozinha, olhos abertos, ferrados num ponto, longe, nem me viu. Não tive compaixão. Ela devia ter saído naquela hora. Voltei para a cama e chorei. Não posso mais confiar nele. Numa noite de insônia, fui para a cozinha, sem fazer nenhum barulho. Antes, liguei a TV na sala e desliguei logo, passava uma bobagem qualquer. Ela chegou, me viu sentado no chão, não disse nada. Voltou para o quarto. Só penso nela. Tâmara.”
(H.A., “A brisa na varanda”, Certos casais.) -
“As pessoas vão partindo. Outro dia um amigo meu, o Fred, também professor do Estadual, posso dizer um garoto, teve um infarto fulminante. Corrigia provas. 56 anos. É muito cedo para ir embora, meu Deus! Na véspera, ele havia me dito que iria me alcançar na idade. Todos vamos viver mais de cem anos, polaco. Veja: Niemeyer, Dona Canô, Barbosa Lima Sobrinho, José Mindlin, Abrão Kasinsky, Tomie Ohtake. A palavra é… longevidade. Quem imaginaria que no outro dia estaria morto?”
(H.A., Vale das ameixas.) -
“Faça um diário, professor. Sim, fui à igreja – como não iria? Laura, Laura, Laura. Sim, sim. Luz, poema vivo. Toda fantasiada, me disse semanas depois, voz que belisca a alma. Gotas de mel no lábio de abelha-beija-flor. Ligeiro, terceiro, quarto? Último. Viajou. Há beijos sem memória, quase todos. Poucos, os três ou quatro que se confundem, atravessam noites, países, décadas – licor. Retorna, vivo, aquele doce período. Disse feliz, rubra, que era o melhor homem que existia. Ele. Como podia afirmar isso? Ciúme, quase raiva. Quantos conhecia? Ela tocava piano. Pareciam de balé seus passos. Mais leve que brisa, ela. Ave, borboleta, esperança.”
(H.A., Vale das ameixas.) -
“Não demorou e veio a guerra, a primeira. Tudo no câmbio negro. O que eu desenhava e escrevia era uma coisa só: soldados atacando e bombas explodindo. Papai construía estradas e pontes para os russos. Nossa casa muitas vezes era uma carroça ou um vagão de trem que margeava longos vales de ameixas. A estabilidade momentânea, com o samovar no chão, era quebrada quando o trem partia de repente, divino Milosz, sua mente nos cativa. O samovar caía, minha mãe levava um susto, as árvores balançavam lá fora, tudo balançava, segurávamos onde era possível. Também revivo a canção grave, doce Henriqueta. Na memória, sobe do vale um soluço que desde sempre conheço. Poemas vividos e trabalhados. Aprendi já na infância que tudo é instável, trens e governos, tudo é fugaz, Senhor, mas a história flui, panta rei, Heráclito, tudo flui, Nietzsche, mesmo que aos tropeções. Nunca esqueço a primeira cena de horror, eu mirava tudo escondido no manto de minha avó: o gado sendo retirado, berrando, pânico, poeira no ar, um horizonte escuro.”
(H.A., Vale das ameixas.) -
“Nada em Osman Lins é gratuito. Sua narrativa palimpséstica, dialética, polifônica esconde um sem-número de camadas de significados e demanda uma cuidadosa, atenta leitura. Às vezes vagarosa, parágrafo a parágrafo, frase a frase, até palavra por palavra. Há, oculta, latente, uma infinidade de sugestões no texto. […] A cada releitura, seus livros oferecem surpresas e revelações.”
(H.A., na apresentação de Osman Lins: o sopro na argila, 2004.) -
“Eu não vi nada, depois me contaram, eu tava na aula naquele dia, naquela hora. O meganha deu um safanão na minha mãe. Aquele covarde. Saiu sangue. Puxou ela pra fora, ela era bonita, sarada, como eu disse. Meu pai tava na construção, trabalhando. Quando mãe chegou lá fora de casa, puxada, os outros, aqueles pêemes, juntaram e começaram a bater nela, na pura covardia, minha mãe no chão, deram chute até não valer mais, em tudo quanto é canto dela. Antes, ela tinha gritado com o primeiro: ‘Covarde! O quê que eu fiz?’. Nem teve resposta, só pancadaria. Caiu. Posso parar de contar essa parte?”
(H. A., Meu nome é Fogo.)