Frases e trechos de livros de Hugo Almeida
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“Dois livros de Osman Lins (1924-1978), reeditados no final de 2024, devem merecer atenção agora em 2025. O romance Avalovara (1973) saiu pela Editora Pinard, com apresentação de Rosana Teles e posfácio de Elizabeth Hazin; Os gestos, contos de 1957, foi relançado pela Olho de Vidro; a reedição do ensaio Guerra sem testemunhas (1969), pela Editora Cepe/UFPE, acaba de sair. Merece destaque a edição anotada da correspondência de Osman Lins e Hermilo Borba Filho, E viva a vida! (Hucitec), organizada por Nelson Luís Barbosa. A Sinete lançou A voz dos sinos, meu ensaio livre sobre o sagrado, a mulher e o amor na obra osmaniana. O volume de ensaios Osman Lins, 100 anos: A vivacidade de seu legado, organizado por Sandra Nitrini e Marcos Moraes, será publicado neste ano.”
(H. A., na revista digital São Paulo Review.) -
“Aprendi que a melhor resposta para os arroubos de Laura é o silêncio. Fica inquieta, e logo reaparece, mas desta vez foi diferente. Nada de telegrama nem carta durante meses e meses. Dona Benedita estranhou. O que será que aconteceu? Será que ela morreu? Vire essa boca pra lá… Ela pode ter perdido meu endereço. Ôxe, já deve saber de cor até. Por sorte Bóris pede companhia, dona Benedita acode. Ele está com fome e não se alimenta sem alguém perto. Manha que trouxe da fábrica, paparicado que era, ficou careca de tanto ser paparicado. Vi pela cortina entreaberta que o carteiro ia tocar a campainha, deu tempo de fazer sinal para ele. Abri a porta, assinei o recibo. Sim, Laura. Carta registrada. Uma carta de sete metros de comprimento e meio de largura.”
(H.A., Vale das ameixas.) -
“Como encontrar um Harley neste mundo? Se for mesmo esse o seu nome. Por impulso próprio Zacarias zarpou ao seu alcance, sem saber por onde começaria a procura. Só volto quando encontrá-lo, morto ou vivo. Aí o tempo passa, nenhuma notícia dele nem sua, outros homens apareceram, ficaram me rodeando, pelo menos nenhum ouviu aquela pergunta, e nenhum poluiu nossos lençóis, nenhum deles ganhou sequer um beijo ou abraço, e você me aparece de novo quantos anos depois, foi difícil reconhecê-lo até notar seus olhos zarcos, e não sei onde está o nosso Zacarias. É um viandante. Deve estar ouvindo por aí Quem é você? De que família, de que pátria? Por si mesmo ninguém descobre o pai. Eu queria tanto poder dizer Meu querido filho, aqui está o seu pai. Ah, se eu soubesse que você voltaria, Harley, nem morta deixaria o Zaca partir.”
(H.A., Vale das ameixas.) -
“Eu queria tanto, Harley, poder falar baixinho só para você ouvir o quanto me sinto feliz com o seu… carinho. Ia escrever amor, mas é melhor carinho, sei que é mais isso mesmo. Até me esqueço que venci metade da minha jornada, que não sou mais aquela quase garota que conheceu no colégio. Mas você ainda é o mesmo, parece menino. Um meninão grisalho e danado. Ah, professor, somos dois adolescentes quando estamos juntos. Tem hora que rio à toa, outras me travo, não sei o que acontece comigo. Você perde a fome, a sede, engole seco, não sabe o que dizer. As mãos perdidas. Pobre da Laura. Você tenta e tenta encontrar as palavras e, quando encontra e fala, sei que não era bem isso que queria dizer, não era bem aquilo. Que diferença da sala de aula, você com as frases precisas, as palavras fluíam rápidas, naturais. Agora fica sem jeito e então você me escreve.”
(H.A., Vale das ameixas.) -
“Com este ensaio, desejo contribuir, um pouco que seja, para o conhecimento e a divulgação do que nos legou, especialmente no universo do sagrado, da personagem feminina e das relações amorosas, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Intento difundir o ânimo e a esperança com que Osman Lins se dedicou à literatura. Trata-se de percepção e pesquisa de um ficcionista que há décadas lê, relê, estuda Osman Lins, encanta-se com a sua obra e não cessa de descobrir novidades nela. Que A voz dos sinos honre a memória e a ficção de Osman Lins, na passagem do centenário do seu nascimento. Esse o meu objetivo maior.”
(H.A., “Apresentação”, A voz dos sinos.) -
“O Chevrolet usado chegou num grande barco a vela – boa cena para um filme. […] Muitas pessoas foram receber o caminhão, o primeiro a chegar a Porto Seguro. A carroceria foi retirada antes, aquele mundo de gente em volta. ‘Nooossa!’ Depois, foi desembarcado o chassi. Quando ele chegou à plataforma, uma mulher que assistia a tudo agachou-se atrás e, depois de ter visto o diferencial (aquela peça redonda, uma bola enorme), levantou-se e exclamou: ‘É maaa-cho…!’. Isso é puro García Márquez, disse a meu avô. Verdade, ele respondeu. Porto Seguro era quase Macondo. O Chevrolet ganhou o nome de Trovão Azul.”
(H.A., Porto seguro, outra história.) -
“Rever Varsóvia, alegria e tontura. A cidade me acolhe, a cidade concreta, prédios, ruas, parques, palácios, igrejas. Ler, ouvir e falar de novo a língua natal, sim, uma bênção, também certa melancolia. […] Adolescentes algazarram em volta da Sereia, na Praça Rynek Starego Miasta, bem no centro da Cidade Velha. Warszawska Syrenka. Os seios mais parecem músculos, sereia armada, espada e escudo, símbolo da minha Polônia tantas vezes invadida e massacrada. Austríacos, alemães, soviéticos. Agora todos turistas. Ninguém mais que eu conheça, nenhum parente, amigo ou conhecido. Eu caminhava, caminhar é o meu fazer, os nervos contidos. Alguns querem saber quem eu sou. De mim ninguém se lembra, fui cedo, muitos ficaram, se foram. Idosos hoje têm os nomes dos garotos do meu tempo. A um deles indago se Thadeu ainda vive. Ele fecha os olhos como se a recordar, abre-os de novo e responde Eu sou ele, a voz longe, longe. Toco-lhe o rosto e pergunto apenas com os olhos se eu ainda estou vivo.”
(H.A., Vale das ameixas.) -
“Cruel ‘iniciador’ de Celina [personagem de O visitante, de Osman Lins], o professor Artur tem muito do pérfido Iago, de Otelo, de Shakespeare, um dos personagens mais detestáveis da literatura – a falsidade, a dissimulação, a cínica capacidade de manipular os mais fracos. Há várias semelhanças entre Artur e Iago. É bem provável que isso seja proposital.”
(H.A., A voz dos sinos.)